sexta-feira, 9 de janeiro de 2015

A ANTROPOLOGIA EM TERTULIANO

Dom Vital CorbelliniBispo de Marabá (PA)

Introdução
A antropologia foi um dos temas mais aprofundados na Patrologia. Tratava-se de ver o ser humano em sua globalidade e no plano original. Em geral, os padres da Igreja foram grandes antropólogos ao aprofundar a visão do ser humano, criado à imagem e semelhança do Criador e sendo recriado em Jesus Cristo, o Redentor da humanidade. A doutrina gnóstica mantinha um desprezo pelo corpo, não tendo nele presente a salvação. Na realidade, a antropologia, a partir também da visão bíblica, trata do ser humano na sua total constituição, corpo e alma. O plano original é levado em consideração, uma vez que o homem foi criado livre, sem algo que o impedisse para se relacionar ou amar. Com a tentativa de se igualar a Deus (cf. Gn 3,5), o pecado entra na realidade humana, e com ele o egoísmo, a falsidade e a falta de amor.

Apresentamos a seguir a antropologia de Tertuliano, Padre da Igreja do Norte da África,  o qual viveu no final do século II e início do III, sendo um dos autores de maior destaque na teologia e cristologia do período pré-niceno e de toda a Patrologia. Ele influenciou muito o Ocidente e o Oriente sobretudo com Hilário de Poitiers e Agostinho.

     1. Dados da antropologia em Tertuliano
Ele  segue a Escola antioquena que une as duas narrativas da criação, o ser humano a um tempo foi feito do lodo(barro) da terra e também criado à imagem de Deus. Tertuliano coloca-se na tradição grega, afirmando a liberdade humana, a responsabilidade de seus atos e a salvação do corpo, não só da alma. Dá-se valor à carne, uma vez que a encarnação do Verbo foi a assunção de toda a realidade humana.
 Ele diz que o ser humano recebeu do Senhor uma dignidade diferente de outras criaturas. O lodo, (o barro) estava nas mãos de Deus; isso é motivo de grande expressão e de alegria, o contato do nada pelas mãos de Deus. Essa obra foi feita com muita dedicação e amor: “Deus era todo dedicado à substância e ocupado com a mão nela, com o pensamento, com o trabalho, com a sabedoria, com a providência e com o amor mesmo que lhe inspirava as linhas para conferir ao homem”. Deus, na sua infinita sabedoria projetou da melhor forma o corpo dando-lhe os contornos necessários para que o ser humano estivesse sempre em ligação com o Criador.

    2. Uma antropologia cristológica – A origem humana
Essa forma de pensamento na antropologia de Tertuliano não estava desligada do Filho de Deus feito carne. “Qualquer que fosse a forma que Deus então imprimia ao lodo, tinha em mente que Cristo ter-se-ia feito homem, isto é lodo, e que o Verbo se teria feito carne, que então era também terra”. “A carne, plasmada pelo espírito, se nutre, se desenvolve, fala, admoesta, faz: é Cristo”. Nesses aspectos percebe-se em Tertuliano que a redenção não está ligada ao pecado. A encarnação do Verbo aconteceria, ainda que o ser humano não tivesse cometido o pecado.   
A criação humana aponta ao Cristo, ao Filho de Deus. Com a encarnação, ele veio para o restabelecimento da situação original em relação ao ser humano, de vida, amor e salvação. Dessa forma, o Pai diz ao Filho, antes da elaboração da própria obra: “Façamos o homem à nossa imagem e semelhança. E Deus fez o homem (cf. Gn 1,26-27), o fez a imagem de Deus, vale a dizer à imagem de Cristo”. A obra criada, ‘o ser humano’ está em ligação com a Trindade. O verbo “façamos” significa mais de uma Pessoa, as três Pessoas empenharam-se na elaboração do mesmo. O lodo que era revestido da futura imagem de Cristo encarnado, não dizia respeito só a uma obra divina, mas tratava-se de seu penhor.
Tertuliano tem presente que a carne veio do lodo. O fato é que do lodo, do trabalho do barro, por parte do Criador, nasceu a carne e é a esta que a mão de Deus deu atenção. O próprio Adão reconhecera que a sua substância tinha se propagado na carne da mulher, quando ele disse à criação da companheira: “Essa é, de fato, osso dos meus ossos e carne da minha carne”(Gn 2,23). O pouco de carne tirada de Adão de que foi formada a mulher foi preenchido com outra carne. Tertuliano até pergunta: “Quando isso aconteceu? No momento em que o homem tornou-se um ser vivente, graças ao sopro de Deus, de modo que o lodo assumiu uma outra qualidade, a da carne”. Da mesma forma como o oleiro, ao regular o calor do fogo, busca reestruturar a argila em vista de uma matéria mais sólida, obter uma outra mais útil do que aquela que tinha anteriormente. Nisso está a grandeza do nada, isto é, do lodo tornado carne, porque está nas mãos de Deus e essa por sua vez “recebeu uma glória ainda maior, o sopro de Deus, na qual as imperfeições foram depostas pelo enriquecimento da alma”.
O vínculo torna-se grande e, ao mesmo tempo, estreito, quase inseparável para se dar a perceber: se é carne que carrega consigo a alma ou a alma que tem em si a carne e se é a alma a obedecer à carne ou a carne a obedecer a alma. A alma, mesmo estando mais próxima de Deus, não gozaria das coisas da terra, senão através da carne. Através da carne, do lodo, cultivam-se os estudos, os trabalhos, as artes, os afazeres; a vida da alma é assim estreitamente unida à carne e que as coisas não ligadas a ela, representam a própria separação da carne. Seria dizer que a própria vida não pertence à carne.

    3. A antropologia na ligação com a soteriologia
Tertuliano tem presente a antropologia com a soteriologia.  Ele entende o corpo humano, a vida das pessoas como fundamento da salvação pelo fato de que, quando Deus liga a si a alma que se encontra na carne, é a carne que possibilita essa ligação. “A carne, sendo ministra da alma, tornou-se companheira e participante das mesmas coisas: se isso é verdadeiro para as coisas temporais, porque não deveria sê-lo para as coisas eternas?”
 Em vista da escatologia, Tertuliano possui uma visão unitária do ser humano, corpo e alma. Assim como a carne é lavada, recebe a unção e é fortificada pela eucaristia, da mesma forma a alma recebe os dons para estar sempre em união com Deus, pela ressurreição. Se tais coisas acontecem nesta vida, também na outra vida deverão receber a recompensa nas duas substâncias de uma forma em conjunto. Como Deus plasmou a obra de suas mãos com a carne sendo a sua imagem, e a preparou para gozar sobre toda a criação, a ressurreição deverá ser o prelúdio dessa obra criada, unida para sempre. “Ele não deixará na morte eterna a obra das suas mãos, o produto de seu pensamento, o receptáculo do seu sopro, a rainha da sua criação, o herdeiro da sua generosidade, o sacerdote do seu culto, o soldado do seu testemunho, a irmã do seu Cristo”. O próprio Cristo ama o ser humano na sua totalidade no corpo e alma das pessoas. Ele mesmo é a vida e a ressurreição. A este mundo ele veio para aqueles que estão mal de sua saúde interior (cf. Lc 5,31); “ele veio salvar o que estava perdido”(Lc 19,10), aqueles que estavam mal no corpo e na alma para, um dia, congregá-los na eternidade.

    4. A Palavra de Deus
Tertuliano tem presente também a Escritura que fala dos contrastes a respeito da carne, dando a impressão de desprezo e de salvação. Se essa diz que toda carne é erva (cf. Is 40,6), diz também que toda carne verá a salvação de Deus (cf. Is 40,5). Se ao mesmo tempo se afirma “o meu Espírito não demorará sobre os homens, pois são carne”(Gn 6,3), pelo profeta há algo importante: “Infundirei o meu Espírito em toda a carne”(Jl 3,1). Paulo, ao afirmar que os desejos da carne são contrários aos do Espírito, ele acusa não a substância, mas as ações da carne. No entanto, ele fala em suas cartas que carrega em seu corpo os sofrimentos de Cristo (cf. Gl 6,17), que ordena pela não-contaminação de nosso corpo, porque templo de Deus (cf. 1 Cor 3,16-17), que fez de nossos corpos os membros de Cristo (cf. 1 Cor 6,15), que nos exorta a glorificar Deus em nosso corpo (cf. 1 Cor 6,20). O próprio Deus reconduzirá à salvação aquilo que ele mesmo criou sendo objeto de seu agrado.

    5. A carne plasmada pela terra e o Verbo na encarnação.
Tertuliano refere o corpo como sendo plasmado pelo lodo da terra, verdade essa ensinada na Sagrada Escritura.  “Que outro é o sangue senão um líquido vermelho? Que coisa é a carne se não terra, transformada em seus reconhecimentos?” Esses mesmos sinais de origem terrestre estiveram presentes também em Cristo e esses aspectos mantiveram escondida a sua filiação divina. Dessa forma, a carne de Cristo, que é igual à nossa, não foi motivo de negação da sua divindade: pelas suas palavras e ações, pelo seu ensinamento e pelo seu poder, os homens olhavam o Cristo com admiração. Se a sua carne fosse de outra matéria, que não a nossa, esse ponto não teria passado em silêncio e não teria conduzido à salvação humana. Mas a prova de sua igualdade está na palavra da própria multidão que se perguntava: “De onde vem estas doutrinas e estes milagres” (Mt 13,54). Mesmo no processo de sua morte, os seus sofrimentos e os seus ultrajes proclamam a humildade de sua carne e a desonra humana. Assim a carne de Cristo não proveio dos céus, porque sofreu a fome na presença do diabo (cf. Mt 4,2-4), a sede na presença da samaritana (cf. Jo 4,7), o choro sobre Lázaro (cf. Jo 11,35) e enfim derramou o seu sangue. Na sua paixão ele pode sofrer os ultrajes e manifestar a todos os sofrimentos.

    6. O ser humano e a sua conformidade com Jesus, o segundo Adão
O ser humano deve ser visto como a carne e a alma, as duas substâncias unidas. Elas mereceram a atenção do Criador, porque, se a primeira é obra da sua mão, a segunda pelo seu sopro vital constituía o ser criado. O homem interior deve renovar-se nesta vida, progredindo todo o dia na fé e na disciplina através do guia do Espírito. Na ressurreição, esse autor africano acredita na unidade das duas partes, que formam o homem e que deverão ressurgir, o interior e o exterior, porque os dois aspectos trabalharam juntos, como também sofreram juntos. Na antropologia de Tertuliano também distinguem-se dois homens, segundo a antropologia paulina. Enquanto o primeiro veio da terra, é terreno, tratando-se do homem modelado com o lodo, de Adão; o segundo homem veio do céu, é a palavra de Deus, Cristo que mesmo sendo do céu, fez-se homem na carne com alma, igual ao primeiro homem, Adão.
Cristo, sendo o único que veio do alto, e por isso sem pecado, enquanto homem é carne e alma. No entanto, devemos nos esforçar para conformar-nos a Cristo nesta vida e no futuro obter com a glorificação de estar na altura. “Como carregamos a imagem do homem terreno, assim procuramos carregar a imagem daquele que está além do céu”(1 Cor 15,49). Temos que carregar a imagem do homem terreno, através da “solidariedade na culpa, o comum destino da morte, o exílio do paraíso”. Ora, para Tertuliano, pelo fato de carregar nesta vida a imagem de Adão, nem por isso devemos nos despojar de Adão: a admoestação não diz respeito à carne, mas ao estilo de vida: “Carregamos a imagem do homem celeste, não como se fôssemos já deificados e estabelecidos no céu, mas nós devemos caminhar segundo a imagem de Cristo, na santidade, na justiça e na verdade”. Em nós, o homem celeste só será realidade pelo homem terrestre que carregamos para torná-lo semelhante ao de Cristo, o celeste. A imagem de Cristo devemos carregá-la nesta vida, nesta carne, neste momento particular, pela prática do bem, do amor. Ainda que nós nos voltemos a outra substância, aquela celeste é a promessa da substância presente, à qual é ordenado realizar o empenho para consegui-la. Por isso a conduta de vida faz-se necessária à pessoa na passagem do homem terrestre para celeste.  

    7. A bondade do Criador
Tertuliano coloca a bondade do Criador ao criar as coisas deste mundo. “Seja feito e foi feito e Deus viu que a coisa era boa”(Gn 1,3.4). O fato era este: Deus viu aquilo que estava realizando, honrava-o, completando a bondade de suas obras pelo seu olhar. Deus bendizia as coisas boas, para que ele fosse sempre anunciado bom em todos os aspectos, tanto no dizer como no fazer. O mundo foi constituído de bens. No entanto, para quem as coisas eram preparadas senão para aquele que seria à sua imagem e semelhança? A divina bondade criou, não só com uma palavra de ordem o ser humano, mas com um ato generoso da sua mão, com uma benigna promessa: “Façamos o homem à nossa imagem e semelhança”(Gn 1,26). A referência é sempre à bondade, não como uma virtude do Criador, mas como uma pessoa, porque ela falou, plasmou o homem do lodo até fazê-lo de carne, sendo um ato de amor de Deus. “A bondade soprou até fazê-lo tornar-se uma alma, não morta, mas viva”. A bondade o fez senhor de todas as coisas, não só para dominá-las, mas para dar-lhes o nome. Novamente a bondade previu para ele uma ajuda: “Não é bom que o homem esteja só”(Gn 2,18). Marcião levantava dúvidas quanto à bondade do Criador porque o ‘homem caiu no pecado’. Tertuliano teve que rebater as contradições marcionitas, afirmando que as obras do Criador atestam a sua bondade, porque de fato são boas quanto ao seu poder infinito, porque criadas do nada. As coisas são grandes e boas, porque criadas por Deus que é onipotente. Ora, se na sua preexistência previa a caída do homem, não foi por causa dele, mas do próprio homem, que foi criado livre por Deus com o próprio arbítrio e poder e é justamente nisso (o livre-arbítrio) a imagem e semelhança com Deus, a mais verdadeira semelhança com ele, de modo a contrariar a Marcião o seu determinismo. O mal veio do homem. A lei que Deus colocou diante dele (o ser humano) previa uma decisão. Havia diante dele o bem e o mal, a vida e a morte (cf. Dt 30,15). Pelo seu livre-arbítrio, ele poderia aceitar ou recusar tal ordem. Se Marcião julgava imprudente ter concedido o livre-arbítrio, Tertuliano o percebia como um ato de sabedoria e de bondade divino. Ele foi constituído, assim, em modo digno de Deus, de sua bondade e de sua racionalidade.
Por que Deus deveria ser conhecido e que coisa podia projetar de grande dignidade, quanto à imagem e semelhança de Deus? Era preciso que a imagem e a semelhança de Deus fossem constituídas com a faculdade do livre-arbítrio e de responsabilidade, pelo qual o ser humano seria imagem e semelhança de Deus, isto é, com a faculdade do arbítrio e de uma vida consciente. Ao soprar no homem, concedia-lhe a liberdade e autodeterminação. A bondade está só em “Deus Incriado porque ele é por natureza bom, enquanto o homem, em princípio é bom por constituição, por causa do desígnio daquele que o constituiu e porque Criador de coisas boas”.

Conclusão
A antropologia de Tertuliano é a superação do gnosticismo (marcionismo)que via a separação do corpo e da alma e afirmação das duas partes que compõem o ser humano, de modo que a ressurreição deverá ser concedida para as duas substâncias (do corpo e da alma). Ele tem presente o plano original, no qual o homem foi criado à imagem e semelhança de Deus. A sua antropologia é também cristológica. O ser humano foi criado em vista do Verbo de Deus que deveria fazer-se carne. “Façamos” tem uma alusão à Trindade, quando o Pai fala ao Filho e ao Espírito Santo na elaboração da obra humana. Dessa forma, Deus plasmou o homem projetando o seu Filho que assumiria a realidade humana na sua integridade, para redimir todas as pessoas, elevando-as até à divindade.
As idéias desse autor africano iluminam a realidade atual para a valorização do ser humano pelo que é, não por aquilo que tem, desde a sua gestação até ao seu declínio, porque criado na bondade de Deus, tendo presente o seu Filho Jesus na sua encarnação e na sua ressurreição.

Fonte: http://www.cnbb.org.br/artigos-dos-bispos-1/dom-vital-corbellini-1/15638-a-antropologia-em-tertuliano

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